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A Canção para Crianças – que canção é essa? Partes 4 e 5

 

Parte 4 – A criança

Aqui, não cabe debruçar-me sobre as inúmeras e diversificadas concepções de infância, pois a complexidade do assunto mereceria estudos aprofundados que naturalmente fogem de minha competência e propósitos neste texto. Gostaria apenas de sublinhar a infância como uma fase estrutural do psiquismo humano, que guarda suas peculiaridades em relação ao universo do adulto, o que justifica plenamente a existência de uma arte exclusivamente voltada para ela.

Acredito que o adjetivo ”infantil”, antecedido pelas expressões canção, teatro, livro, história, filme, entre outras linguagens artísticas, não se trate apenas de uma distinção mercadológica frente ao fato de a infância ser considerada hoje um nicho consumidor, alvo da maioria das campanhas publicitárias de todo o mundo. Além da questão do mercado e sua necessidade de ca

talogar os produtos com o fim de atingir este ou aquele público, o que é um fato, penso que a ideia de uma arte para crianças pressupõe a ideia de que a idade infantil traz em si um saber distinto do saber da idade adulta. De que a relação da criança com o mundo é essencialmente diferente da do adulto. Evoquemos as palavras da psicanalista Leda Mariza Fischer Bernardino ao referir-se à infância como um tempo em que acontece a constituição do psiquismo humano:

A infância, portanto, é o período de descobrimento do mundo através de um olhar sempre interrogador, curioso e maravi-lhado da criança diante do desconhecido. É a fase da relação mágica e lúdica com o mundo que a rodeia. É o tempo da brincadeira, da fantasia e da imaginação, elementos que desempenham um papel crucial no processo de construção do conhecimento, da afetividade, da sexualidade, da inteligência, da sensibilidade, da socialização, da percepção corporal, enfim, é o tempo da constituição da individualidade.

As palavras de Bruno Bethellhem ilustram nossas considerações:

[…] é importante que possamos resgatar o que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição, para lembrar de que as crianças ainda são crianças, que a infância é um tempo necessário de preparação para a realidade tal qual ela é, que as crianças não nascem prontas e necessitam de certas condições para tornarem-se sujeitos falantes, desejantes e futuros cidadãos criativos. (BERNARDINO, 2006, p.11)

Há um tempo certo para determinadas experiências de crescimento, e a infância é o período certo de aprender a construir pontes sobre a imensa lacuna entre a experiência interna e o mundo real (BETHELLHEM, 2001, p.83).25

Engana-se, dessa forma, quem considera esse processo de amadurecimento da criança isento de conflitos, medos, angústias e sofrimentos. Desde Freud sabemos que as crianças não são seres inocentes e puros como nos fazem crer as representações sociais sobre a infância, e que, desde muito cedo, a criança vê-se envolta em desafios e tensões de várias ordens.

Neste contexto, ressaltamos o papel significativo da arte durante a travessia do ser humano através das diferentes idades, cada qual com suas belezas, mas também com seus desafios e “perigos” particulares. É reconfortante saber que podemos ter a arte permeando nossas vidas, nos ajudando constantemente a amenizar nossos sofrimentos, superar nossas dificuldades, exercitar nossa capacidade criativa ou simplesmente embelezar nossas ho-ras e nossos dias através da pura fruição estética.

No caso específico da criança, a influência da arte intensifica-se, pois, sendo um sujeito psíquico em formação, encontra-se mais suscetível às influências do meio.

A canção para crianças, arte que alia o poder espiritual da música com a força existencial da literatura, pode influenciar de forma vital a criança em todos os aspectos do seu desenvolvimento.

Nosso objetivo ao longo deste livro será justamente esclarecer como a canção exerce essa influência benéfica sobre a criança, e como o adulto, sendo o mediador da relação canção-criança, pode e deve valorizá-la, bem como inseri-la definitivamente na vida familiar, escolar e social dos pequenos.

 

Parte 5 – A canção para crianças

A canção para crianças, gênero ainda muito pouco difundido e valorizado pela sociedade em geral (ao contrário da literatura infantil, que atualmente goza de grande e crescente prestígio), 26 A canção para crianças  vem, aos poucos, mostrando seu potencial para alcançar o status de obra de arte no Brasil.

Universo amplo e complexo, caracteriza-se pelas diferenças de estilos dos cancionistas, intérpretes, músicos e arranjadores; pelas diferentes concepções de infância de quem cria e produz; pelos diferentes graus de qualidade técnica e artística das obras; pelos distintos níveis de qualidade de sua produção; pelas diferenças em suas relações com as diversas culturas; pelos distintos graus de habilidade e criatividade no manejo de seu material poético e musical; pela variedade de gêneros e estilos musicais; pela liberdade e diversidade dos temas abordados; pelas suas diferenças formais; enfim, um universo onde a permissibilidade criativa leva o ouvinte mirim a universos inimagináveis guiados pela luz de duas grandes estrelas: a palavra e a música.

 

       É dessa canção que trata este livro, da canção que, além da questão mercadológica, possui características que a distinguem da canção voltada ao público adulto. Essas características encontram-se presentes em quase todo o cancioneiro autoral destinado à infância, e sua análise poderá nos ajudar a melhor definir seus contornos, bem como delinear-lhe um perfil particular. Quem sabe assim, estaremos contribuindo para que essa canção venha a ter um lugar de destaque no cenário artístico brasileiro.

 

Este texto constitui o Capítulo 1 do livro A Canção para Crianças – uma contribuição ao reencantamento da infância, de Rosy Greca.

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