0
Artigos

Vôos e Curiosidades sobre o Cancioneiro Folclórico Infantil

By 28 de janeiro de 2019 No Comments

O que é cancioneiro folclórico Infantil?

 

O cancioneiro folclórico brasileiro é muito amplo e muito tênue a linha que separa o infantil do restante. Para selecionar as peças que integram nossa obra, estabelecemos alguns critérios, buscando facilitar essa escolha, considerando como cancioneiro folclórico infantil:

  1. Canções folclóricas comumente entoadas por nossas crianças, independentemente de seu conteúdo ou função;
  2. Canções folclóricas vinculadas a coreografias e brincadeiras de roda;
  3. Canções folclóricas entoadas por adultos com a finalidade de distrair ou divertir crianças;
  4. Canções folclóricas de ninar;
  5. Canções folclóricas que apresentam conteúdos lúdicos ou que, de alguma forma, sejam adequados ou tenham alguma ligação com a criança.

 

Porque manter vivas as tradições populares?

 

Temos observado, com tristeza, manifestações de algumas pessoas que, de repente, se deram ao trabalho de pensar de forma isolada nas letras de algumas músicas folclóricas e, “alarmadas” com o seu conteúdo, vêm fazendo campanhas contra o nosso cancioneiro, essa consagrada tradição popular, uma das mais ricas do mundo.

Há pouco tempo, recebemos, através de várias pessoas, o e-mail de um brasileiro residente nos Estados Unidos, que se deu conta do conteúdo de algumas de nossas canções tradicionais e, dentro de uma visão estreita, colocou suas opiniões críticas sobre o assunto, sem se deter na complexidade dos aspectos inerentes à matéria.

Fato ainda mais curioso que o próprio e-mail tem sido a reação das pessoas diante do mesmo. Quem leu o volume 1 desta obra ou quem estuda a cultura popular brasileira, certamente, já está familiarizado com o assunto e consegue compreender as nuances entre o “belo” e o “feio” contidas nas letras das nossas canções, nos nossos mitos, nas nossas lendas e na nossa maneira particular de ver o mundo. Já os que são pegos de surpresa e fazem uma leitura superficial desses elementos, acabam incorrendo no erro de enxergar apenas um aspecto isolado, rotulando tudo como feio e grosseiro.

Não podemos pensar no nosso cancioneiro folclórico, sem levarmos em conta nossa história, nossa vida, nossa alma, enfim, nosso contexto. Nossas canções são o reflexo deste conjunto e, como na história de qualquer povo, não ficam registrados somente os fatos heróicos, as glórias, as conquistas… Ficam também estampados os fracassos, as desgraças, as desigualdades e as coisas ruins que aconteceram. O folclore, por ser uma forma de representação da realidade cultural, registra a existência e o tempo das pessoas, revelando a dor ou a alegria dos fatos.

Muitas coisas aparentemente incompreensíveis no folclore podem estar ligadas ao inconsciente coletivo descrito na teoria de Jung, segundo o qual, todos os seres humanos carregam em sua bagagem genética as experiências milenares da humanidade, independente do espaço e do tempo.

Enxergar apenas um dos lados, o bom ou o ruim, é se posicionar diante de um horizonte muito limitado. O panorama do nosso cancioneiro é amplo e merece ser vislumbrado em sua totalidade.

No capítulo 2, do volume 1 da coleção Cancioneiro Folclórico Infantil, quando discorremos sobre os temas do cancioneiro, tecemos algumas colocações sobre a reação das pessoas ao serem levadas à reflexão sobre as letras do mesmo e dos mecanismos que as levaram a aceitar, mesmo que inconscientemente, os conteúdos implícitos nessas letras. Não se faz necessário repetirmos todo discurso novamente. Porém, voltamos a reforçar a ideia de que esses conteúdos são fruto da vivência dos nossos antepassados e que se encontram grandemente incorporados à nossa própria vida.

Tentar negar ou abortar os elementos da nossa cultura popular que não nos agradam, é como tentar viver só de flores e a vida não é assim. Devemos sim, tentar compreender esses elementos, uma vez que através deles compreendemos a nossa própria história.

O feio, a desgraça estão presentes no nosso dia-a-dia. Cantar também é uma forma de externar os sentimentos ruins. Porém, nem tudo se resume a coisas negativas. Encontramos a beleza, a singeleza, o humor, a graça em muitas das nossas canções folclóricas. Se quisermos ser rigorosos com o cardápio musical de nossos pequeninos, devemos antes de abolir certas canções folclóricas, eliminar a maior parte dos enlatados que nos são empurrados goela abaixo pela grande mídia, que intoxica o nosso povo, desde a mais tenra idade, com seus ingredientes pouco recomendáveis.

Não se trata de puritanismo, mas conteúdos menos apropriados estão em algumas peças do nosso repertório popular, em que as letras apelam para as bundas, as xerecas e os peitinhos, todos explícitos, em algumas músicas atuais de sucesso, além de outras que, se não são apelativas, também não apresentam nenhum conteúdo relevante. Por outro lado, ao menos os bois da cara preta, as cucas, as Bitus retratadas nas nossas canções refletem com mais autenticidade o nosso jeito de ser e, por esta razão, vem perpetuando-se ao longo dos séculos, enquanto as demais duram somente o tempo conveniente à mídia capitalista.

Os desenhos animados apresentados na televisão, em sua maioria, contêm cenas de violência ou absurdos como uma vaca e um frango filhos de humanos, crianças mal-educadas e grosseiras, vilões que se dão bem e, até mesmo, insinuações pornográficas. O que dizer disso então? A maioria destes enlatados televisivos, tão distantes da nossa cultura, são importados e impostos às nossas crianças, de forma muito mais maléfica, que as canções do nosso folclore.

Além do mais, pensando bem, é preferível que nossas crianças desmistifiquem os bois e as cucas com a certeza de que os pais logo voltam, do que sonhem sonhos lindos e, ao acordar, saibam que jamais poderão voltar a ver seus pais, porque estes, depois de arremessarem bombas sobre gente inocente, serão também bombardeados, numa tragédia sem fim e sem explicação.

Mudar é preciso? Sim, mas a mudança deveria começar exatamente pela concepção dos programas infantis da mídia atual, que mesmo admitindo serem o reflexo da cultura de alguns lugares, continuam alheios à nossa cultura nacional, com raras exceções.

 

Já a transformação da cultura popular é um processo mais lento e que acompanha o processo evolutivo do próprio homem. Se nas manifestações folclóricas e dentro destas o cancioneiro perdura por tantos anos sem apoio da mídia massificada é porque algum motivo mais forte as mantém vivas, e este motivo é também um dos objetos do nosso estudo.

 

Texto extraído do livro Cancioneiro Folclórico Infantil – Volume 2 de Lydio Roberto e Mara Fontoura

Leave a Reply